Em maio de 2013, o ex-funcionário da NSA Edward Snowden denunciava ao mundo a coleta de dados em massa e os inúmeros programas globais de vigilância conduzida pela agência. Os documentos ultrassecretos que comprovavam os fatos foram entregues a repórteres do The Guardian, que publicaram junto ao The Washington Post inúmeras reportagens sobre a existência e as funções desses programas secretos. Quase uma década depois, uma publicação afirma que a NSA tentou persuadir o Reino Unido a parar a publicação do jornal britânico.

A informação é do cineasta e jornalista investigativo Richard Kerbaj contada no livro ‘The Secret History of The Five Eyes: The untold story of the international spy network’ (‘A História Secreta dos Cinco Olhos: a história não revelada sobre a rede internacional de espionagem’, em tradução livre) lançado nesta quinta-feira (1º). Nele, Kerbaj conta que o chefe da Government Communications Headquarters (GCHQ) – equivalente a uma NSA do Reino Unido – Iain Lobban foi chamado na madrugada de 6 de junho de 2013, mas rejeitou a sugestão de que a agência britânica deveria censurar a publicação do jornal em nome do parceiro estadunidense. https://www.theguardian.com/us-news/2022/aug/31/edward-snowden-nsa-gchq-guardian-book

EUA pediu à inteligência britânica parar publicação de jornal sobre revelações de Snowden

Imagem: Divulgação/Blink Publishing

Embora tenha declinado o pedido, a GCHQ esteve na redação do The Guardian quase cinco semanas após as publicações para forçar a destruição dos arquivos entregues por Snowden, em um ato puramente simbólico, visto que o mundo já tinha ciência das informações entregues pelo whistleblower e o material já havia sido compartilhado com outros jornais para apuração como The New York Times.

A ligação na madrugada e a recusa do ex-chefe da GCHQ geraram mal-estar na aliança dos Cinco Olhos, o primeiro de vários causados pelo ex-NSA, atualmente refugiado em terras russas. Apesar da ciência da importância do bom relacionamento entre as duas agências de inteligência, Lobban pensou que “a proposição de pressionar um jornal a parar o artigo para o bem da NSA parecia ir longe demais”.

“Não era nem o propósito de sua agência nem o seu próprio para lidar com as relações públicas da NSA”, escreve Kerbaj.

Em outubro do mesmo ano, foi a vez do governo de Davi Cameron ameaçar com o uso de medidas e outras “mais dura” para impedir mais publicações sobre a coleta em massa de comunicações por telefone e pela internet pelos órgãos de inteligência britânica e norte-americana. Apesar do esforço, a DA-Notice, órgão que alerta a mídia britânica sobre possíveis riscos à segurança nacional causados por publicações, disse na época ao Guardian que nada do que havia sido publicado havia colocado vidas britânicas em risco.

A relação entre NSA a GCHQ ficou ainda mais abalada quando o general Keith Alexander não informou Lobban de que os norte-americanos haviam identificado Snowden, um contratado do governo baseado no Havaí, como fonte das recentes publicações que rodavam o mundo, deixando a GCHQ continuar as buscas por conta própria. A inteligência britânica ficou ciente da identidade de Snowden apenas quando ele foi a público em uma entrevista para o The Guardian, no início de junho de 2013.

Foi um lembrete desconcertante de como você é importante, ou como não é importante”, disse um informante sênior da inteligência britânica citado no livro.

EUA pressionou inteligência britânica para impedir publicação sobre revelações de Snowden

Sede do serviço de inteligência britânico (GCHQ). Imagem: arpingstone/Wikipedia

A série de constrangimentos se seguiram à medida que as reportagens denunciavam cada uma delas envolvendo várias nações do mundo, incluindo aliados e os próprios parceiros dos EUA no G20. O material divulgado citavam além da NSA e a GCHQ, a inteligência australiana (ASD) e a neozelandesa (NZIZ), parceiros do Five Eyes, que compartilhavam o banco de dados.

Embora indignados com a “descuido” dos Estados Unidos em relação a Snowden, um administrador de sistemas terceirizado pelo governo com amplo acesso aos segredos das inteligências – à época, 1,5 mil funcionários tinham autorização máxima como do ex-agente –,  apenas os representantes britânicos questionaram abertamente as práticas dos EUA em um encontro entre funcionários da coalisão no fim daquele conturbado ano na Austrália.

O restante dos aliados não estava preparado para desafiar os norte-americanos por receio de ser excluído do circuito de inteligência. Entretanto, os britânicos acabaram reavaliando a frustração para com os colegas da NSA ao pensar no valor da inteligência e no financiamento provido pela agência estadunidense.

“Os Estados Unidos nos dão mais do que nós lhes damos, então temos que basicamente continuar com isso”, disse o ex-conselheiro de segurança nacional do Reino Unido, também citado no livro.

EUA pressionou inteligência britânica para impedir publicação sobre revelações de Snowden

Sede da Agência Nacional de Segurança (NSA) em Fort Meade, em Maryland. Imagem: Reprodução/NSA

The Secret History of The Five Eyes: The untold story of the international spy network

Para escrever ‘The Secret History of The Five Eyes’, o jornalista usa de seus 15 anos de experiência em reportagens premiadas sobre segurança nacional. No currículo, Kerbaj já entrevistou mais de 100 oficiais da inteligência, incluindo o já citado ex-diretor do GCHQ Iain Lobban, o diretor geral da CIA David Petraeus, a diretora geral do MI5 Eliza Manningham-Buller, o diretor da NSA Almirante Mike Rogers, o conselheiro de Segurança Nacional Britânico Kim Darroch, o chefe da ASIO Mike Burgess, o chefe do Serviço Canadense de Inteligência de Segurança Richard Fadden e Ciaran Martin, funcionário que supervisionou as avaliações britânicas sobre a possível participação da chinesa Huawei no papel de criação da rede 5G no Reino Unido.

Em 2014, Snowden descreveu a aliança dos Cinco Olhos como uma “organização de inteligência supranacional que não obedece as leis de seus próprios países”, visto que ao espionar os cidadãos e compartilhar informações entre os associados, eles contornam regulações domésticas restritivas de espionagem.

A rede dos Cinco Olhos (Fvey) também chamada pelo codinome Echelon, é composta por cinco países membros, entre eles Canadá, Austrália, Nova Zelândia, além dos países cocriadores, Estados Unidos e Reino Unido. Acreditava-se que as operações dessas nações em conjunto tinham terminado com a União Soviética durante a Guerra Fria.

Entretanto, a rede Echelon formada em 1956 foi reconhecida publicamente em 2010 graças às publicações do WikiLeaks, em especial com o cabo “Secret – Not for Foreign Eyes”, escrito em 2004, que além de estabelecer o cenário para a visita do então Presidente George Bush ao Canadá, tratava do compartilhamento de informações internacionais, do qual a Nova Zelândia faz parte, com a base de espionagem Waihopai em Marlborough.

Além do Five Eyes, há outras alianças formadas por nações adicionadas aos Cinco Olhos, como o Seis Olhos, Nove Olhos, 14 Olhos e 41 Olhos.

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