Na semana retrasada, o deputado federal Marcos Antonio Pereira Gomes (PL-SC) – popularmente chamado de “Zé Trovão” – protocolou um pedido de liminar para banir temporariamente os chamados “jogos violentos” do mercado brasileiro dos videogames. A proposta veio em resposta aos ataques armados às escolas ocorridos nas últimas semanas, que resultaram em vários feridos e mortos.

Nesta terça-feira (18), foi a vez do presidente Luiz Inácio Lula da Silva dar declarações desfavoráveis a jogos do tipo ao tentar estabelecer uma conexão entre os games e a escalada da violência vista nos ataques. O assunto já foi amplamente debatido na esfera científica e, embora um consenso propriamente dito ainda seja ponto de debate (esse estudo diz que sim, esse outro diz que não, por exemplo), Marcela Ribeiro, psicóloga clínica formada pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS), discorda da noção de que os jogos violentos – ou, ao menos, apenas eles – possam ter atribuída a culpa pelos problemas que vimos ao longo deste mês de abril.

Veja na íntegra o bate-papo, exclusivo ao TecMasters, com a especialista.

Imagem mostra cena do jogo Grand Theft Auto IV, um dos muitos a enfrentarem o rótulo de "jogos violentos"

Grand Theft Auto IV é um dos jogos mais populares da Rockstar Games, mas também um dos mais contenciosos: em 2008, um adolescente agrediu duas mulheres na rua alegando ter sido influenciado pelo game – argumento que o juiz do caso não acatou (Imagem: Rockstar Games/Reprodução)

Culpar os jogos violentos é ignorar contexto

TecMasters – A correlação “jogos violentos tornam crianças violentas” já foi enunciada ou desmentida em diversos estudos: há estudos que afirmam que há sim um grau de influência de jogos de tom mais incisivo na mente de uma criança, ao passo em que outros dizem que essa relação não é o que se espera (causa versus efeito), mas sim uma questão de moderação – jogos em níveis controlados de tempo mantêm adolescentes entretidos e, consequentemente, menos propensos a se ocuparem com outras coisas – como armas. A primeira pergunta é: por que essa falta de consenso? Qual sua visão sobre o assunto?

Marcela Ribeiro – É natural que existam opiniões divergentes quando é levantada uma questão social, pois outros fatores são levados em consideração quando o assunto é violência e suas motivações. Quando falamos das pesquisas citadas, pensamos que foram usadas amostras específicas que pautaram todo o estudo e isso não significa que um está errado e o outro certo, mas sim que foram obtidos resultados diferentes e significativos em cada um deles, de acordo com a população observada e com o intuito ou a metodologia da pesquisa em si.

Acredito ser um assunto de extrema relevância para que possamos desmistificar alguns tópicos que por vezes são abordados como verdade absoluta, quando muitas vezes essas discussões acontecem sem levar em consideração os contextos sócio-históricos dos envolvidos. Ao falarmos de um assunto delicado como este, precisamos nos atentar a todas as variáveis existentes.

TecMasters – Os recentes ataques às escolas em várias regiões do Brasil foram atribuídos à violência de alguns jogos – segundo pelo menos um deputado, com um projeto de lei que pedia o banimento de tais conteúdos no território nacional. De onde vem essa percepção e o banimento seria uma forma de solucionar casos assim? Ou, com o perdão do trocadilho, seria tudo um “tiro n’água”?

Marcela – Ao apontarem um culpado, uma única justificativa, voltam todo o foco do problema para uma única coisa e saem como os donos da verdade absoluta. Não é de hoje que usam os jogos como justificativa e, assim, não olham para contexto e vivências dos autores dos ataques como um todo. Banir certos jogos não acabará com os problemas sociais existentes.

TecMasters – Dos diversos estudos que procuramos em nossa pesquisa, nenhum efetivamente provou uma conexão de causa e efeito que afirme categoricamente que “jogos violentos criam pessoas violentas”. Ainda assim, pessoas como o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, e até mesmo congressistas brasileiros em várias épocas, afirmaram ser esse o caso. Por que, na sua opinião, insistem nessa correlação sendo que a ciência ainda não tem um consenso definitivo sobre o assunto?

Marcela – Ao insistirem na ideia, desviam o foco de coisas muito mais sérias e significativas que envolvem a violência e o que motiva os ataques. Muitos não querem ter de explorar toda essa problemática. É muito mais fácil, simples e objetivo culpar os jogos em vez de olhar para as complexidades da vida real e todas as falhas existentes na sociedade. Se de fato todas as pessoas que tiveram contato com jogos de violência fossem moldadas por isso, teríamos um índice muito maior de violências num geral, de ataques a diversos grupos e lugares, e não é assim que ocorre na prática.

TecMasters – Nas redes sociais, a fala do deputado Zé Trovão, sobre proibir jogos violentos; e mais recentemente do presidente Lula sobre essa correlação, foram encontradas com rechaço pela comunidade consumidora de jogos. Muitos, inclusive, posicionaram argumentos voltados ao contexto da vida de alguns autores destes ataques – houve quem afirmasse casos de bullying como causa, enquanto outros direcionaram a culpabilidade à retórica política de congressistas que comumente favorecem a facilitação de aquisição de armas, entre outras coisas. Como psicóloga, na sua opinião, é possível que essa retórica de representantes públicos – não só políticos, mas também celebridades e criadores de conteúdo digital – possa ser um fator de influência e, se sim, quão maior ou menor ele seria em relação aos jogos?

Marcela – Pode-se considerar um fator de influência quando existe uma figura pública tratando de determinado assunto, pois as pessoas tendem a atribuir mais credibilidade. Se é um influenciador ou um político que um indivíduo acompanha e admira, não necessariamente esse mesmo indivíduo irá questionar a veracidade e o teor dos discursos. Dessa maneira, podemos dizer que este espaço que representantes públicos ocupam pode até ser perigoso se há, por exemplo, um discurso agressivo, reproduzindo uma normalização destas posturas mais hostis. Por outro lado, quando o indivíduo tem contato com o jogo, ele está tendo a própria experiência, [e a partir dela] formando sua opinião sem ser guiado por falas externas. Se a influência será maior ou menor, depende de outros fatores como personalidade, contexto de vida e idade de cada um.

“Ao apontarem um culpado, uma única justificativa, voltam todo o foco do problema para uma única coisa e saem como os donos da verdade absoluta. Não é de hoje que usam os jogos como justificativa e, assim, não olham para o contexto e as vivências dos autores dos ataques como um todo. Banir certos jogos não acabará com os problemas sociais existentes.” – Marcela Ribeiro, psicóloga

Imagem do jogo Call of Duty: Modern Warfare 2, da Activision

Call of Duty (foto) é um dos jogos de guerra mais populares do mercado mundial, mas também já teve seu nome atribuído como influência de ataques a escolas: o atirador de Realengo, em 2012, afirmava passar tempo em jogos violentos – mas também tinha fixação pela história do terrorismo e por temas de extremismo religioso (Imagem: Activision/Divulgação)

TecMasters – De forma mais direta, o que você considera como fator decisivo para influenciar a autoria de ações violentas por uma pessoa? Esses fatores diferem conforme idade (se crianças e adolescentes respondem a um fator e adultos, a outro)?

Marcela – Podemos levar em consideração diversos fatores que influenciam ações violentas, sendo os mais relevantes: fatores biológicos, psicológicos, ambientais e sociais; qual o contexto de vida do indivíduo, onde mora, como se constitui seu ciclo social, se há algum distúrbio psicológico ou fisiológico, se cresceu em um ambiente saudável ou violento, contexto educacional, possíveis vivências relacionadas à desigualdade social, fanatismo ideológico entre outros. Quanto mais nova a pessoa, maior a tendência de ser influenciada por fatores externos porque sua personalidade ainda está em desenvolvimento. É nesse período que nossa mente absorve maior quantidade de informações e assim ou nos apropriamos daquilo como algo que passa a nos constituir como indivíduo, ou descartamos como algo irrelevante para o nosso desenvolvimento, até que nos formamos adultos de fato com nossas convicções, princípios e personalidades.

TecMasters – Autores de ataques do tipo no passado mencionaram jogos em seus “manifestos” – mas tais passagens eram bem simplórias e curtas frente a toda uma linha de pensamento que demorava a incluir videogames na decisão pelos ataques. A classe política se apegar a esse detalhe, ignorando o restante, soa como conveniência retórica? Ou há justificativa plausível para isso?

Marcela – Não é uma justificativa plausível a partir do momento que fica cômodo para estes políticos se apegarem a apenas um fator possivelmente justificável do que olhar para os problemas mais profundos. Importante ressaltar também o que foi citado anteriormente, que a maioria das pessoas que joga hoje em dia não apresenta problemas comportamentais relacionados a estes jogos em questão. Apenas a menção de jogos violentos não deve ser suficiente para justificar essa questão sem evidências científicas de que eles são uma causa significativa de violência.

“O que constitui um ser humano vai muito além dos jogos que ele tem contato, mas sim suas vivências e contextos sociais.”

TecMasters – Ainda sobre esse assunto: em 2020, a American Psychological Association afirmou em comunicado que “atribuir a violência aos videogames não é algo cientificamente sólido e afasta a atenção para longe de outros fatores como histórico de violência, os quais sabemos de nossas pesquisas ser um grande indicador de violências futuras”. Você concorda com essa posição?

Marcela – Concordo, pois o que constitui um ser humano vai muito além dos jogos que ele tem contato, mas suas vivências e contextos sociais.

TecMasters – Falando de forma direta: é errado ou correto estabelecer a causa de um problema de segurança pública como a violência como vindo dos jogos de tons mais violentos e, consequentemente, querer proibi-los? Existe alguma avaliação que justifique esse pensamento do ponto de vista científico?

Marcela – Errado, especialmente se considerarmos que problemas sociais envolvem muitas outras variáveis. Basta imaginar que, se de fato as pessoas não tivessem mais qualquer tipo de contato com jogos violentos, ainda assim existiriam outros inúmeros fatores que as incentivariam a cometer ataques e a propagar discursos de ódio. Faltam políticas públicas que vão direto ao centro do problema, que promovam maior cuidado e acolhimento à saúde mental. O que poderia ser aplicado neste contexto são testes de personalidade, a fim de identificar possíveis transtornos em relação aos autores dos ataques.

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Marcio
18 de abril de 2023 20:22

Vejo tantos deputados roubando e colocando dinheiro na cueca nem por isso virei um ladrão