É fácil puxar pela memória qualquer filme que tenha ressaltado, em algum grau, um público com alguma forma diferente de se comunicar com o mundo: em “Eternos”, por exemplo, a Marvel escalou Lauren Ridloff para viver “Makkari”, a primeira heroína surda do universo cinematográfico da empresa.

O exemplo de Ridloff é apenas um em uma megaprodução milionária, mas no último fim de semana, uma estreia elevou esse potencial a novos ares: o curta brasileiro “Silêncio Bruto”, do diretor João Gabriel Kowalski, conta com boa parte do elenco constituída de atores e atrizes surdos, dentro de uma narrativa que, para a felicidade de todos os envolvidos, desempenha muito bem o papel de mostrar que uma produção cinematográfica que envolve essa parte do público não precisa necessariamente tratar sobre a questão auditiva.

Em Silêncio Bruto, Verônica (vivida por Karolina Halona) vai a uma concessionária de carros com a intenção de vender o seu Fusca (sim, leitores de menos idade: “aquele Fusca“), apenas para se deparar com funcionários inescrupulosos que abusam da grosseria e, em virtude da surdez da personagem, a tentam “passar a perna”. O filme, no entanto, mostra que Verônica não é necessariamente um alvo fácil…

Tecmasters: Em entrevistas recentes, você disse que “Silêncio Bruto”, embora conte com elenco de pessoas surdas, não é um “filme sobre surdos”. Pode explicar isso?

Kowalski: Apesar da história ser protagonizada por surdos, a ideia do filme sempre foi criar um universo que não tratasse das dificuldades e dramas cotidianos que os surdos passam. Isso está inserido no contexto – é impossível escapar dessa dialética -, porém a protagonista da história poderia ser uma pessoa ouvinte. O ponto é que os vilões da trama são justamente pessoas preconceituosas e capacitistas.

O filme vem em uma época onde, felizmente, cada vez mais as pessoas estão percebendo que “surdez”, bem como outras diferenças físicas ou psicológicas, estão deixando para trás o aspecto de “deficiência” em troca de uma percepção de normalidade, de que pessoas com ou sem audição seguem rotinas de vida comuns. Isso se reflete no filme, onde temos personagens de apresentação comum – o nerd, o gay etc.: isso foi proposital?

Acho que essa sua segunda pergunta responde bem à primeira. Os surdos possuem um universo particular que é deles, mas todas as representações são as mesmas. O ponto é que parte dos surdos fala LIBRAS e português, [e] alguns são oralizados e outros não.

Mas independente disso, é o nosso universo, o dos ouvintes, que deve incluir os surdos em todas as pautas sociais. Nós, ouvintes, temos o dever de construir pontes para dialogar e conversar com as diferenças e se possível aprender novas línguas para que o mundo seja um lugar mais inclusivo. Isso vale para outras comunidades minoritárias.

Em nossa pesquisa, vimos que você tem uma pessoa surda em seu círculo familiar – o primo de sua esposa, que lhe ensinou a comunicação em LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais). Como era a sua percepção sobre a surdez antes de conhecê-lo e o que o fez mudar depois?

Eu nunca havia feito contato com alguém da comunidade surda antes de conhecer o Beto. Sempre tive uma espécie de medo de tentar me comunicar com algum surdo. Acho que as pessoas – e eu me coloco nesse lugar- , têm uma certa preguiça de fazer um esforço para falar na língua de outra pessoa.

O problema é que essas pessoas estão entre nós, ouvintes. Eu ainda estou aprendendo LIBRAS. É uma língua muito complexa, mas belíssima, que faz total sentido quando você começa a aprender. Olhar para o Beto e ter empatia por algumas situações em que ele se passava foi fundamental para começar uma mudança dentro de mim. 

João Gabriel Kowalski, co-diretor do filme "Silêncio Bruto"

João Gabriel Kowalski co-dirigiu o curta “Silêncio Bruto” sem fazer com que a surdez tomasse o centro da narrativa, mesmo com elenco surdo (Imagem: @jonnykowa, via Instagram)

Além da surdez, vê-se nas redes sociais outros projetos e intenções de mostrar outros aspectos de vida dentro das situações mais rotineiras – o autismo, por exemplo, conta com uma representação online crescente que busca mostrar que, independente de quaisquer adaptações necessárias, existe normalidade mesmo na condição da pessoa. Você vê “Silêncio Bruto” como uma forma de expressar isso e, na sua opinião, abrir espaço para que outras vertentes também possam seguir o mesmo caminho?

Acho que a arte é fundamental para levar debates e incluir minorias em posições de destaque. O cinema, principalmente, tem a função de levantar temas importantes e criar representatividade nas telas. Quanto mais filmes e séries abordarem essas temáticas, melhor vai ser para as diversas comunidades.

Existem alguns cineastas surdos surgindo no Brasil e isso é maravilhoso. Creio que daqui há alguns anos, o público surdo terá uma categoria de filmes voltados a eles. Por exemplo, vamos acessar a Netflix e buscar “cinema surdo” ou algo parecido, e receber de volta uma série de opções de produções dirigidas ou protagonizadas por surdos. É um nicho muito importante a ser atendido e que merece ser representado nas telinhas e telonas.

Você acha que as redes sociais estão ajudando a quebrar paradigmas de se enxergar as pessoas surdas ou de outras diferenças clínicas como “vítimas carentes de ajuda” e mostrar como a vida delas, afinal, não é tão diferente assim de pessoas sem esses diagnósticos? Vide a Karol [Halona], sua protagonista, que é bióloga, educadora, pesquisadora e, agora, uma atriz de mão cheia…

Acho que a internet de fato quebrou esses paradigmas. Hoje a gente tem influenciadores surdos que estão participando cada vez mais de projetos culturais e estão mostrando seus cotidianos, levantando discussões e debates. A internet é muito perigosa e perversa, mas ao mesmo tempo é maravilhosa por poder proporcionar e dar voz para as pessoas que estiveram tentando aparecer durante muito tempo. As mídias sociais deram um empurrão que faltava para que a gente possa acolher e compreender novos universos.

Karolina Halona é a protagonista de "Silêncio Bruto", curta-metragem brasileiro que conta com elenco surdo (Imagem: @silenciobruto, via Instagram)

Karolina Halona é a protagonista de “Silêncio Bruto”, curta-metragem brasileiro que conta com elenco surdo (Imagem: @silenciobruto, via Instagram)

Cinco coisas que você deve saber sobre o surdo

Criar uma produção que trabalhe com um nicho tão específico – mas sem necessariamente focar no que o torna tão específico – pode ser uma grande sacada por parte do diretor e da equipe.

Isso porque, ao tratar do tema, os ouvintes vêm percebendo que existe uma forma cada vez mais evoluída de abordagem. Segundo levantamento de 2019, feito em conjunto entre o Instituto Locomotiva e a Semana da Acessibilidade Surda, o Brasil tem cerca de 10,7 milhões de pessoas com algum tipo de surdez, sendo 2,3 milhões em um grau mais severo da condição que atinge 54% de homens e 46% de mulheres.

Por essa razão, existem vários fatores da comunidade que podem soar como uma novidade para quem é ouvinte tradicional – algumas foram informações que vieram como algo inédito até para a nossa equipe, tais como…

“Surdo-mudo” não existe pois o termo é incorreto

Embora cada vez mais em desuso, o termo “surdo-mudo” já foi bastante aplicado para se referir à comunidade surda de forma errada – e ele não deve ser usado em nenhum contexto. Isso porque a surdez não necessariamente torna a pessoa muda: isso vinha de uma percepção da qual o surdo “nascido” não aprendia a “falar” como uma pessoa ouvinte.

Pense assim: você falar português – e somente português – na Rússia, por exemplo, pode dificultar a compreensão da sua comunicação. Entretanto, isso não é igual a dizer que você é “mudo”, tendo em vista que você tem uma voz como ferramenta de comunicação.

É o mesmo com os surdos: existem vários outros métodos de comunicação que são reconhecidos por especialistas e que funcionam tão bem quanto o idioma falado – logo, não são “mudos” -, como por exemplo…

LIBRAS é “língua”, não “linguagem”

Segundo qualquer dicionário, “linguagem” é o meio de transmissão de uma comunicação mais atrelado à interação, enquanto “língua” é mais voltado a uma forma específica de comunicação vinda de um público determinado.

No entendimento prático: o gesto de “positivo” ou “jóia”, onde você ergue o polegar em sinal de aceitação, é mundialmente reconhecido, certo? Ingleses, portugueses e brasileiros vão entender o que significa. Já a Língua Brasileira de Sinais é reconhecida como o mecanismo oficial de comunicação dos surdos – não muito diferente de como o português brasileiro é a nossa língua oficial. Evidentemente, existe um aprofundamento maior neste tema, mas você entendeu o básico da coisa…

Outro ponto interessante é que, em LIBRAS, não há o emprego de tempos verbais ou artigos que posicionem gênero: o sinal para “ele” ou “ela”, por exemplo, são iguais. E toda a comunicação deste meio é bem mais baseada em contexto do que em tempo verbal. O sinal positivo mencionado acima, dentro de LIBRAS, também serve para enfatizar uma situação, não apenas uma resposta de “sim” ou “não”.

Finalmente, LIBRAS não é universal, o que serve para ressaltar ainda mais sua característica única de comunicação: assim como português e inglês são diferentes, LIBRAS também não tem a mesma execução se comparada à American Sign Language (ASL) e interações entre ambas requer tradução específica.

LIBRAS tem acessibilidade garantida por Lei

Devido ao fato de usar não apenas as mãos, mas também as expressões faciais e corporais de quem a fala, LIBRAS é reconhecida por Lei no Brasil, acompanhada de um projeto de acessibilidade que introduz a comunidade surda dentro do contexto geral de comunicação do país. Estamos falando da Lei Brasileira de Inclusão (13.146/2015).

Existem vários efeitos práticos em relação a isso: já viu, pronunciamentos dos nossos políticos e boa parte dos programas de TV, aquela “janelinha” com uma pessoa reproduzindo – em LIBRAS – o que é falado na programação original? Ou então livros didáticos com algum conteúdo de introdução a LIBRAS?

Tudo isso é efeito da introdução da Lei, sancionada pela ex-presidente Dilma Rousseff em 2015 e que passou a valer a partir do ano seguinte. Segundo o portal do Senado, a legislação beneficia pelo menos 45 milhões de pessoas.

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